Capítulo do Livro Rios de Memórias da Professora Ana Angélica Matos Rocha intitulado Dona Sinhá - a sua mãe - especial para este domingo, 12 de maio de 2013 Dia das Mães!
Dona Sinhá
Eu
quero a memória acesa depois da angústia apagada.
Cecília
Meireles
Dona Sinhá, assim era conhecida por todos na
cidade apesar de seu nome verdadeiro, doce, e suave, que traduzia a leveza da
sua alma: Isabel. A mais velha das quatro filhas de meu avô. Uma mulher forte,
de fibra. Casou-se com meu pai aos vinte e dois anos, um casamento arranjado
entre primos. Viveram sessenta e um anos, de uma vida conjugal que não foi,
talvez, a mais romântica, mas, creio que se amavam apesar das diferenças
individuais.
Meu pai, um homem rústico, pouco afeito a
dengos, minha mãe, uma mulher que só vivia para o lar, saía apenas para ir à
igreja ou quando estava lavando roupa no Rio Gongogi, ou no Rio Preto. Criou nove
filhos. Amava-os incondicionalmente, eram como joias preciosas em suas mãos, ou
pintinhos debaixo das suas asas.
Nunca entendeu e não se conformava com as
peças que a vida muito cedo lhe pregou: perdeu, ainda crianças, dois de seus
filhos, uma menina e um menino. Assistiria outros dois, já adultos, partirem
prematuramente.
Dona Isabel não tinha
escolaridade, desenhava, com dificuldade o seu nome, quando era preciso assinar
algum documento público ou cumprir, através do voto, seu papel de cidadã. Aprendera
a ler na fase adulta estudando a Bíblia, sua fonte de doutrina e fé, de onde
tirava ensinamentos para sua vida.
Falava de Jesus e
compartilhava, com todos que chegavam lá em casa, do que Ele significava na sua
vida. Dava exemplos de como viver conforme os preceitos do Evangelho, citava
versículos, lia passagens bíblicas. Sabia “de carreirinha” onde estava, na
Bíblia, quase tudo do que, naquele momento especificamente, ela iria precisar.
Tinha uma palavra de fé para cada um.Uma vez por mês, o pastor ministrava um
culto lá em casa, almejava que todos os seus filhos estivessem ali e comungassem
com ela a mesma fé. Sonhara, por toda a vida, ver seu marido, aos domingos,
acompanhando-a à igreja. Nunca conseguiu.
Porém, testemunhou a sua conversão ao Deus Supremo, já no fim da sua jornada
aqui na terra. Ficou feliz, glorificou o
nome do Senhor.
E, a cada dia, procurava
viver conforme os ensinamentos de Jesus, como uma verdadeira cristã: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao
próximo como a si mesmo”. Fundadora da 1ª Igreja Batista da cidade, aí congregou
por mais de sessenta anos.
Esposa sempre dedicada
ao marido, mesmo nos momentos em que esse não correspondia às suas expectativas,
quando chegava em casa zangado ou até muito
agressivo explodindo com quem achasse pela frente.
Em casa, tinha a companhia
silenciosa, mas muito amorosa do seu bichinho de estimação – o Lourinho, como
era chamado o papagaio que recebera da irmã que foi morar em Recife, em um mil
novecentos e sessenta e quatro. Amava-o, como a um membro da família.
Conversava com ele, que respondia com arrufos de alegria chamando-a Sinhá,
Sinhá... Nunca mais o deixaria. Apesar da ausência saudosa da sua protetora,
ele sobrevive tristonho até hoje.
Ainda menina, eu presenciava,
sem condições de nada fazer, minha mãe sofrer dilaceradamente. Os seus três
filhos mais velhos partiram em busca de trabalho no Sul do país. Um a um era
pranteado diariamente, numa época em que não havia as facilidades tecnológicas
de hoje, nem ao menos um telefone.
Logo mais, minha irmã
mais velha se casa, ficam com meus pais eu e dois irmãos mais moços. Um desses, parte mais tarde em busca de estudo
e trabalho. De resto, eu e meu irmão caçula, como seus ajudadores. E eu, como sua
cuidadora.
A princípio, minha irmã
continuou morando na nossa cidade, o que nos consolava, poderíamos vê-la
sempre. Minha mãe tinha um cuidado especial com ela. Quando o marido viajava,
ou eu ou um dos meus irmãos mais novos teria que ir dormir em sua casa. Ninguém
questionava, era uma ordem, apesar de não gostar muito de deixar a minha cama.
Quando minha irmã engravidava,
cuidados redobrados. Nos dias que antecediam a data provável do parto, não
tinha quem fizesse ela arredar pé da casa da filha, e me levava junto, caso
precisasse de alguma coisa. Lembro uma noite em que seu marido viajara, e tive que “dormir” sentada na porta do quarto onde as
duas estavam. Eu chorava e pedia compaixão, que me deixassem entrar, e nada. O
importante, naquele momento, era o bem-estar da minha irmã. Na verdade,
falecera alguém na cidade, e eu estava com medo de dormir sozinha. As duas alegaram que
não me cabia onde elas dormiam, voltasse então para meu quarto. É claro, não
dormi. No outro dia, meu coração estava sofrido, repleto de raiva, a vontade
era desaparecer, se isso fosse suficiente para tirar, de dentro de mim, aquele sentimento
de rejeição. Não fiz nada disso. Estava com muito sono e precisava, com
urgência, de uma cama. Hoje, resta a lembrança de um momento bastante desagradável, sem qualquer ponta de mágoa.
Quando minha irmã entrou em trabalho de parto
da segunda filha, sobrou para mim, aos dez anos de idade, às quatro horas da
manhã, ter que buscar a parteira. Fazia um frio de quebrar os ossos - o mês de
maio sempre foi muito frio. E, sem um agasalho mais apropriado, saí a galope
pela madrugada, atravessando a cidade enrolada em um lençol, da cabeça aos pés.
Parecia mais uma alma penada nas ruas nebulosas e sombrias da cidade. Meu corpo
se arrepiava e sentia calafrios. Medo ou frio? Provavelmente os dois.
Nascida a menina e, já
no outro dia, eu teria o trabalho de lavar-lhe as fraldas. Isso todos os dias.
Quando recusava realizar a tarefa, apanhava ou, no mínimo, ficava de castigo
sem poder ir ao encontro de minhas primas. Para mim, um castigo e tanto! Não
tinha em casa irmã que brincasse comigo. Alguma prima cobria a falta. Moravam
próximas umas das outras. Apanhei várias vezes por não cumprir uma obrigação a
fim de ir brincar com elas.
Mais tarde, essa irmã, acompanhando o marido, muda
para Minas Gerais – Nanuque. E, depois, para o extremo sul da Bahia, precisamente,
Alcobaça. Fica comigo a responsabilidade de, como a única filha mulher
presente, tomar conta de minha mãe. Tudo era comigo. Mensalmente, em um dia
exato escolhido por ela, tinha de escrever três cartas, uma para cada um dos
filhos que moravam no Sul e Sudeste do país. Sentávamos à mesa, e ela ia
ditando o que iria dizer: pedia cuidado com os perigos da cidade grande, falava
da saudade que sentia, mandava lembranças de todos os familiares, incluía fotos
e, ao final, implorava que respondessem a carta assim que a recebessem.
Ao ditar a carta,
chorava, lamentava a falta dos filhos, como se já os tivesse perdido para
sempre. Muitas das vezes, eu chorava com ela. O seu sofrimento me deixava com muito
ódio dos meus irmãos que, de longe, não viam o que se passava. Angustiava-me
vê-la à espera de uma carta deles, que demorava meses ou até mesmo anos.
Quando chegava, eu tinha que ler pelo menos três vezes e por vários dias. Ao
arrumar os seus pertences, após ter nos deixado aos noventa e quatro anos de
idade, encontro esta enviada por meu irmão, de 1958. Estava eu com doze anos de
idade.
Após receber essa
correspondência, nós o vimos por umas duas vezes. Decorridos oito anos, ele
morre, aos trinta e três anos de idade, em
circunstâncias trágicas. Caíra do oitavo andar de um prédio no centro de São
Paulo - o apartamento onde morava, havia pegado fogo.
A causa real, nunca se
soube. Sobre o episódio, só tivemos notícias alguns dias depois. Um primo
distante, que não víamos há anos, leu, nas páginas policiais de um jornal de São
Paulo, uma nota sobre um corpo que caíra de um prédio no centro da cidade. O
nome que aparecia no jornal era de Xenaldo Matos Rocha, meu irmão. O mesmo
primo, após a identificação do corpo, assumiu o sepultamento e nos comunicou o que
ocorrera através de carta.
Na época, eu ensinava
Educação Física no Ginásio de Iguaí. Em um exato dia, antes de receber a triste
notícia da morte de meu irmão, acordara às cinco horas da manhã, para me
encontrar com os alunos, onde íamos ter uma atividade. Não me lembro do assunto,
mas era algo ligado à alvorada, ensaio de desfile ou coisa parecida. Logo ao
acordar, de passagem pela a cozinha, para ir ao banheiro, que ficava fora do
corpo da casa, me deparo com minha mãe chorando sem consolo. Assustada, pergunto
o que havia acontecido e, aos prantos, ouço o que jamais esqueci:
- Minha filha, acordei
sem um pedaço de mim. Arrancaram um pedaço do meu coração. Está doendo muito.
Abraçamo-nos, chorei com ela até acalmá-la
enquanto buscava ajuda. Após alguns dias, recebemos a notícia da data e hora
exata da morte de meu irmão. Eram as mesmas daquele momento em que encontrei minha
mãe chorando na cozinha.
Foi muito forte e muito
difícil de acreditar no que estava assistindo. Minha mãe, no seu amor extremo,
sentira prematuramente as dores da perda de seu filho. Eu sofria duas vezes:
pela perda do meu irmão e por minha mãe. Por muito tempo, permaneci anestesiada, assustada, sem ação, querendo ajudá-la e sem saber como. Cobria-a com todo zelo,
mas os problemas estavam apenas
começando.
Janeiro de um mil
novecentos e sessenta e seis, mês em que meu irmão morrera. Minha mãe parecia
um trapo humano. Eu, fortemente fragilizada, fazia tudo para não a deixar
sucumbir. Teríamos de ir para Nanuque. Minha irmã estava esperando, para o mês
de fevereiro, o nascimento do seu quinto filho. Sabia que a viagem representava
um dos maiores desafios que iríamos enfrentar. Minha mãe enjoava bastante em
viagens terrestres, e essa duraria, mais ou menos, uns quatro dias. Não havia
ônibus direto para a cidade. Em algum trecho, teríamos que pegar um trem. Mas,
o amor de mãe falou mais alto, e ela não pensou duas vezes.
Preparamos tudo e pegamos a estrada. No caminho,
o sofrimento foi duas vezes maior. Minha mãe, com a alma despedaçada e, ainda,
aguentando firme o enjoo. Foram quatro dias sem comer, sem beber. Tomava água
aos golinhos provocada por mim. Através da janela, olhando a paisagem, eu divisava, no horizonte, um amanhã nebuloso e a
incerteza se chegaríamos ao nosso destino. O ritmo cadenciado do trem fazia lembrar que a realidade era aquela, nua e
crua. Tínhamos de ser fortes. Porém, confesso que tive muito medo de minha mãe
sucumbir à viagem.
Chegamos! Não sei como, mas chegamos. Minha
mãe logo me recomendou que não contasse nada sobre o que acontecera ao nosso
irmão. A notícia poderia comprometer o parto.
Padecendo a dor da perda do filho, não tinha o direito de deixar
transparecer um semblante triste, choroso. O bem-estar de sua filha, naquele
momento, estava acima do seu próprio sofrimento. Que amor incondicional! Que
coração é esse para aguentar, ao mesmo tempo. a alegria de estar com a filha e
o sofrimento de perder um filho. Como explicar tal dialética?
Na primeira quinzena de fevereiro, em uma
tarde de domingo, chega à casa de minha irmã uma nossa conhecida que viera fazer uma visita de pêsames à família.
Logo na entrada, descarrega, desastradamente, estendendo a mão à minha mãe:
- Meus pêsames!
Minha irmã fica paralisada, minha mãe treme
como vara verde e eu, naquele fogo cruzado, tive de contar a história tentando
não me emocionar para não piorar as coisas. Poucos dias depois, como num filme,
lá estava eu novamente, numa cidade distante, agora não mais embrulhada num lençol,
mas enrolada, às voltas, sem saber ao certo como achar o caminho do hospital
para chamar o médico que iria fazer o parto em casa. Logo ao chegar, ele pediu-me que entrasse no
quarto para ajudar-lhe. Nos meus vinte anos, com a coragem de uma leoa e a
fragilidade de quem não sabia nada de nada sobre o parto, recebi, nos meus
braços, uma menina linda, enquanto o médico cortava o cordão umbilical.
Concluiu o seu trabalho e foi embora. Fiquei
com a criança limpando-a e arrumando-a. Só depois, a entreguei à mãe para
amamentar.
A menina linda que
peguei em meus braços, hoje, compartilha o seu amor e toda a sua dedicação à
sua mãe, como um dia eu fiz com a minha. Que seja, para sempre, abençoada.
Depois dessa bendita maratona, decidimos que
não havia mais condições de minha mãe viajar para tão longe por via terrestre.
As próximas viagens para Alcobaça, onde minha irmã passou a morar, aconteceriam
de outra forma. Iríamos de carro até Ilhéus onde ela pegaria o avião para
Caravelas onde estaria meu cunhado, esposo de minha irmã, à sua espera.
Recordo-me, com carinho, do meu cunhado. Gostava
de mim, como de uma filha. Presenteou-me com uma penteadeira recomendando que
era um brinquedo de boneca. Quando recebi o móvel, fiquei estatelada. Enfeitou
o meu quarto enquanto morei em Iguaí e até hoje faz parte das minhas relíquias,
na casa da minha cidade. Sempre nas idas
a Alcobaça, procurava nos agradar com comidas exóticas que mandava preparar na
beira da praia, ou outros quitutes que, para nós, eram novidade. Meu cunhado
não está mais entre nós, para ele, a minha gratidão e saudade eternas.
Nos momentos de férias
em Alcobaça gozava do convívio de minha irmã, de minhas sobrinhas e sobrinhos.
A sobrinha mais velha, a que me deu o trabalho de ir buscar a parteira às
quatro horas da manhã, já me acompanhava nas paqueras aos garotos que vinham de
toda parte do Brasil veranearem na cidade, principalmente da Bahia e de Minas
Gerais.
Uma outra sobrinha mais
nova, à época, com aproximadamente cinco anos de idade, era meu chamego. No
deslumbramento de uma infância em contato permanente com a natureza, (minha
irmã morava em um sítio à beira de um caudaloso rio, o Itaitinga), brincávamos
de bambolê, tomávamos banho no rio e, ao colocá-la para adormecer, pedia-me
para cantar ‘Um dia gatinha manhosa eu
prendo você no meu coração...”, música de Erasmo Carlos, de muito sucesso
na época. Nas cartinhas que me escrevia
no início do seu processo de letramento enternecia-me com mensagens como
esta:
Minha mãe era de uma
ingenuidade a toda prova. Para ela, ninguém era mau, ninguém fazia nada errado,
acreditava nas pessoas em seu estado puro de grandeza. Se alguém lhe falasse sobre um erro de um dos seus filhos,
além de não acreditar, tentava convencê-lo
das qualidades que os mesmos possuíam.
Lembro-me que, de volta
de uma das suas viagens a Alcobaça, estávamos, eu a algumas primas, esperando-a
no aeroporto de Ilhéus. Ao descer do avião, assustou-se ao ver que muitas
garotas gritavam e corriam em direção a um
rapaz que, ao seu lado, estava chegando ao saguão da sala de desembarque. Fomos ao seu encontro, e ela logo quis saber o motivo da confusão Não seria
aquela uma abordagem violenta injustamente dirigida ao seu companheiro de vôo?
-Um moço tão simpático,
sentou ao meu lado e conversamos muito, perguntei-lhe se conhecia meus
sobrinhos que moram em Salvador, pois ele está indo para lá.
Não acreditei! Minhas
primas davam risadas. Daríamos tudo para estar no seu lugar. O moço bonito e
simpático que sentara ao seu lado era nada mais nada menos que nosso ídolo da Jovem
Guarda, Jerry Adriani.
No dia da minha viagem
para Salvador, na véspera do vestibular, foi uma chantagem só:
-É isso mesmo, a gente
cria os filhos e no final fica sozinha. Minha única filha mulher que mora
comigo, vai me deixar.
Chorou bastante, tentei convencê-la de que não
iria abandoná-la nunca. Meu primeiro dia das mães longe dela, mandei-lhe este
cartão. O primeiro de muitos daí por diante:
Mesmo não estando
morando com ela, continuei sendo sua cuidadora, sua procuradora, sua amiga.
Víamos-nos quatro vezes no ano, e muitas vezes ela passava férias aqui em casa.
Corri para junto dela quando faleceu o seu filho caçula, em 1977. Sofremos
juntas mais uma vez. Trouxe-a para ficar alguns tempos comigo. Tanto meu pai
quanto minha mãe não gostavam de sair. Achavam que só eles poderiam cuidar da
casa, do pomar, das galinhas do jardim.
O destino ainda lhe
reservava algumas peças: foi operada, em Feira de Santana, da tireoide. Devido à
complicação da cirurgia, teve que ser reoperada com menos de vinte e quatro
horas. Recuperou-se aqui em casa.Em um mil novecentos e noventa, vivencia
a tragédia acontecida com um filho que,
após tomar uma pancada na cabeça, é operado e fica em coma por quinze dias e
quase quatro meses de reabilitação em minha casa. Recuperou-se quase que
totalmente, restando-lhe poucas sequelas.
Concedeu-nos o Senhor a
dádiva de comemorarmos os seus noventa e um anos. Um almoço para toda a
família, amigos mais chegados e os seus companheiros e companheiras da Igreja
Batista onde congregava. Repito aqui o que, naquele momento, eu disse para ela.
-“Mãe, você é a minha alegria, minha amiga mais próxima, meu exemplo de
humildade, de fé e de força. A sua presença me embala como canção de ninar. Os
seus cabelos brancos são, para mim, como lãs que afofam a minha alma. Os seus ensinamentos
fizeram-me melhor porque você mostrou com as suas atitudes que o importante é SER
e não apenas TER. Ensinou-me a enxergar o mundo para além do que os meus olhos
veem. Então, mãe, você é e será sempre a mais bendita das mulheres. Você é e
sempre será: eterna”.