Pedro Chequer
(Foto: Alan Marques/Folhapress)
Problemas Brasileiros – O
programa de resposta à Aids no Brasil é respeitado internacionalmente.
Estima-se que em torno de 657 mil pessoas sejam portadoras de HIV no
país, mas apenas 313 mil têm acesso a tratamento médico. Como mudar esse
quadro?
Pedro Chequer –
Em 1996, o Brasil foi pioneiro na discussão dos países em
desenvolvimento para prover acesso a antirretrovirais. A partir dali,
estabeleceu-se uma política pública que deixou de ser de governo e
passou a ser de Estado porque ela nunca foi interrompida, sendo mantida
mesmo nos períodos de dificuldade financeira. O primeiro ponto a
considerar é a questão das iniquidades regionais. O país tem grandes
diferenças de cobertura e de acesso ao tratamento e ao diagnóstico. Com
base nos dados do Ministério da Saúde, sabemos que a adversidade se faz
mais presente nas regiões Norte e Nordeste. Na região Norte há uma
carência muito grande de diagnóstico, principalmente na zona rural. O
tratamento acontece nas grandes cidades e a população do interior fica
desguarnecida. A dificuldade de acesso ao serviço de saúde se deve ao
fato de que o tratamento da Aids depende do Sistema Único de Saúde [SUS].
E o SUS está cambaleante, sofrendo um revés com a privatização e com a
terceirização dos serviços, deixando pouco a pouco de ser um mecanismo
de Estado. Sem um SUS forte, não é possível expandir o diagnóstico e nem
reduzir as iniquidades regionais. Outro aspecto é a mobilização social.
Não se conseguirá nunca a ampliação do tratamento sem uma ampla
mobilização social através do envolvimento dos movimentos sociais, das
Organizações Não Governamentais [ONGs] e da mídia. O processo que
está em curso para diagnóstico e tratamento foi relançado em dezembro
de 2013, mas nós não vemos divulgação na televisão. Os meios de
comunicação não estão mobilizados e envolvidos no processo. Não há
pronunciamentos de grandes líderes, de governadores, da presidente ou de
outros ministérios que não o da Saúde. Tenho a impressão de que [a comunicação] é uma proposta essencial para ampliar o diagnóstico. Todavia, ela acontece em 1º de dezembro [Dia Mundial de Combate à Aids]
e no carnaval, mas depois desaparece da mídia. É necessário um processo
bastante intenso de mobilização social, utilizando os meios de
comunicação. E uma mobilização da classe política de alto nível, a
partir do posicionamento, por exemplo, da presidente. Fernando Henrique
Cardoso se manifestava sobre a Aids, assim como Luiz Inácio Lula da
Silva, mas a presidente Dilma, pelo menos que eu saiba, nunca se
posicionou sobre o tema de maneira pública. Isso diminui a importância
política do problema e faz com que os governos estaduais e municipais,
que são executores do SUS e implementadores de políticas públicas,
releguem o tema a um segundo plano.
PB – Há falta de recursos?
Chequer –
Não, não há. Para o tratamento não falta. Uma estratégia importante é
garantir alternativas de diagnóstico. Tradicionalmente, o Brasil fazia o
exame de detecção Elisa [sigla em inglês para Enzyme Linked
Immunosorbent Assay] como o mundo todo faz, em laboratório com
bioquímica. Nos anos 1990, foi introduzido o teste rápido. Em 2005,
chegou o teste rápido resolutivo, com diagnóstico em 20 minutos. No
momento, está sendo ampliada essa estratégia. Em algumas regiões, como o
Nordeste e a Amazônia, é importante utilizar o teste rápido porque
dificilmente vamos ter laboratórios públicos ou privados disponíveis
para fazer o teste tradicional. No final de 2013, o Ministério da Saúde
decidiu utilizar o teste oral, que em breve deverá ser implementado.
Isso é mais uma alternativa.
PB – Quanto custa por mês o tratamento individual da doença?
Chequer –
O preço vem caindo ao longo dos anos. No início, nos anos 1990, ele
custava US$ 7 mil por ano. Hoje está em torno de US$ 1,6 mil. Mas eu
diria que ainda está caro no Brasil. Na África, utilizando os genéricos
indianos, por exemplo, o tratamento está na casa das centenas de
dólares. Comparativamente, o custo no Brasil ainda está caro. Por quê?
Porque o Brasil privilegiou a produção nacional e estatal, que precisa
ser turbinada do ponto de vista da eficiência, porém é uma estratégia
política importante. É preferível realmente pagar um pouco mais caro
para que a indústria nacional produza porque isso evita que o país
dependa da importação de medicamentos de multinacionais ou de outros
produtores de genéricos.
PB – O senhor é um grande defensor do licenciamento compulsório de antirretrovirais produzidos fora do país. Como está essa política?
Chequer – O Brasil tomou a decisão errada em 1995, quando adotou precocemente o Trips, [sigla em inglês para Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio].
Poderia ter aguardado, como a Índia, que esperou até 2005. É por isso
que a nação asiática tem hoje uma indústria nacional de produção de
genéricos que exporta para o mundo inteiro, a baixo custo, e com
eficiência. Só que, por pressão do governo americano, o Brasil se
precipitou e passou a reconhecer a patente de medicamentos, antecipada
em dez anos. A lei brasileira, de acordo com a lei internacional,
permite que se emita a licença compulsória [quebra de patente para produção local].
Entre 2004 e 2005, o país tentou emitir licença compulsória para o
medicamento Kaletra, da companhia farmacêutica Abbott, e mais dois
medicamentos. Mas, infelizmente, não avançou. Esse processo amadureceu
e, em 2007, foi a vez da licença compulsória do medicamento Efavirenz.
Mas é essencial que o país passe a utilizar mais efetivamente o
mecanismo do Trips, emitindo licença compulsória para a produção de
medicamentos sem o caráter de patente.
PB – Como fazer a indústria brasileira avançar na produção de medicamentos e antirretrovirais?
Chequer –
Ampliar o parque nacional estatal e não apenas o privado – que é
importante que se fortaleça. Mas é fundamental que o Estado, com base na
Constituição, que encara a saúde como um direito do cidadão e um dever
do Estado, promova o fortalecimento e a ampliação da produção de
medicamentos genéricos. Aí entra a necessidade de licença compulsória
para que o genérico possa ser produzido. O que está sendo feito até aqui
é importante, mas não é suficiente. Há necessidade, talvez, de dobrar
ou triplicar investimentos em laboratório estatal para que se possa
competir com mais eficiência.
PB – A produção brasileira de antirretrovirais consegue atender a demanda interna?
Chequer –
Não. O Brasil produz uma variedade que não é suficiente. São 20
princípios ativos e o Brasil produz apenas dez. E esses medicamentos vêm
sendo menos utilizados porque estão surgindo novos. Mas os novos estão
sob patente e aí se cria a necessidade de ampliar o elenco de licenças
compulsórias. Na prática, a quantidade de medicamentos produzidos no
Brasil permanece a mesma desde o fim dos anos 1990 e início dos anos
2000. Os únicos acréscimos foram a produção do Efavirenz e do Tenofovir.
A médio prazo, corremos o risco de ter tudo sob patente porque os
medicamentos antigos vão perdendo terreno. E vai chegar um momento em
que seremos totalmente dependentes da importação.
PB – Quebrar a patente de um medicamento é um processo muito complexo?
Chequer –
Não é complicado. A legislação é bastante clara, os passos estão bem
definidos. É uma decisão política de priorizar a área de saúde. Eu me
lembro que, em 2005, quando estava sendo negociado a quebra de patente
do Kaletra, da Abbott, o processo estava sob o comando do Ministério da
Saúde, à época conduzido pelo ministro José Saraiva Felipe. De repente,
passou para o então ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio
Exterior, Luiz Fernando Furlan. Felipe levou um susto, considerando que o
Planalto decidira que quem passaria a negociar não era mais o seu
ministério. Eu participei dessa reunião. Ou seja, deixou de ser uma
questão de saúde e passou a ser uma questão de indústria e comércio, que
envolve outros interesses. E esse argumento de que o Brasil perderia no
cenário mundial investimentos da indústria farmacêutica é bobagem. Foi
emitida a licença compulsória para o Efavirenz e nada aconteceu. Por
quê? Porque o Brasil é um mercado grande para a indústria multinacional.
Acho que tem que haver decisão política no sentido de implementar as
licenças compulsórias previstas pelo Trips, pois não se estará violando a
legislação internacional. Pelo contrário, estaria cumprindo a
legislação e atendendo a necessidade brasileira. E ampliar não só
antirretrovirais, mas outros medicamentos, focando, por exemplo, os
remédios para câncer, que são muito caros e o Brasil tem que importar a
um preço extorsivo. Mas também é preciso investir na capacidade nacional
de produção e não só declarar a licença compulsória.
PB – O perfil dos brasileiros portadores de HIV tem mudado ao longo do tempo?
Chequer –
Vem mudando, não só no Brasil, mas no mundo inteiro. No início da
epidemia, prevaleciam no Brasil usuários de drogas, hemofílicos e
transfundidos de um modo geral, homossexuais e, logo em seguida,
trabalhadores sexuais. Sim, o perfil tem mudado ao longo do tempo.
Felizmente, o Brasil nos anos 1990 adotou a testagem do sangue com
bastante sucesso. E hoje é cada vez mais raro ter uma infecção por
transfusão sanguínea. Se acontece, é mais por janela imunológica [intervalo de tempo entre a infecção pelo vírus da Aids e a produção de anticorpos anti-HIV no sangue]
do que por falta de testagem. Mudou o perfil na medida em que cada vez
mais a população feminina vem se infectando. Entre adolescentes e
jovens, o número de casos notificados de mulheres é cada vez maior –
inclusive houve um período em que era um pouco maior o número de
mulheres do que de homens. Também chegou a haver uma queda de casos
entre a população masculina homossexual. Mas vem mudando esse perfil
novamente: gays jovens estão sendo cada vez mais atingidos pela
epidemia. É uma dinâmica muito complexa. Do ponto de vista de risco de
infecção, não há dúvidas de que a população de homens que fazem sexo com
homens, usuários de drogas injetáveis e trabalhadores sexuais são as
populações mais atingidas e que correm maior risco de infecção.
PB – Desde
que teve início a epidemia de Aids, homossexuais e profissionais do
sexo, por exemplo, sofrem com o estigma do chamado “grupo de risco”. O
que tem sido feito para combater esse preconceito?
Chequer –
A prevalência da Aids entre a população de homens que fazem sexo com
homens é em torno de 10,5% e de 4,9% entre trabalhadores sexuais. Já
entre usuários de drogas o índice é um pouco maior: 5,9%. Ou seja, bem
distante da prevalência na população em geral, que é menor de 0,6%.
Efetivamente, essas são as populações que estão sob maior risco de se
infectar. Logo, devem ser objeto de maior preocupação, investimento e
mobilização, com políticas claras, sem o preconceito e sem o dogma
religioso. É preciso utilizar verdadeiramente a fundamentação
científica.
PB – Nos
últimos anos, tem crescido a influência da bancada de fundamentalistas
cristãos sobre o Congresso Nacional e sobre o governo federal. De que
maneira isso pode prejudicar o combate à Aids no país?
Chequer –
Tem prejudicado e muito. O país poderá sofrer as consequências a médio e
a longo prazo. O Brasil continua avançando na área de tratamento,
apesar dos problemas que o SUS vem enfrentando, mas houve um retrocesso
imenso na área de prevenção. Campanhas foram vetadas. Inclusive,
participei do lançamento de uma campanha de televisão no Rio de Janeiro
durante o carnaval, cerca de dois anos atrás, e uma semana depois ela
estava suspensa por ordem do Palácio do Planalto, porque houve pressão
da bancada conservadora, principalmente evangélica. Há também grupos
católicos conservadores pressionando, mas a força política maior, com
certeza, está com os evangélicos neopentecostais. Já os evangélicos
metodistas, luteranos, presbiterianos, episcopais são aliados. Eles
fazem parte inclusive da Comissão Nacional de Aids, com posições muito
claras com relação a preservativos, sem qualquer preconceito.
Infelizmente, para surpresa de todos, o Brasil, que era vanguarda na
área de campanhas de prevenção, está retrocedendo cada vez mais. Duvido
que mude em 2014 porque é ano de eleição e aí a negociação eleitoral
supera qualquer princípio do interesse coletivo. Essa é a realidade.
PB – Segundo o Programa das Nações Unidas de Combate à Aids [Unaids],
desde 2001, o número de novas infecções caiu 33% em todo o mundo.
Porém, na Europa Oriental, na Ásia Central e na África, esse índice tem
crescido. Como impedir o avanço da Aids nesses lugares?
Chequer –
Tem crescido, principalmente, no norte da África, no Oriente Médio, no
Leste Europeu e na Ásia Central. No restante do mundo, inclusive na
África Subsaariana, os índices vêm caindo de forma importante. Isso
graças a quê? Primeiro, em razão da utilização do preservativo, e,
segundo, à expansão do tratamento. Atualmente, o tratamento não só
preserva a saúde do indivíduo, como também evita a transmissão. Se o
paciente segue a rigor a prescrição terapêutica reduz em até 96% a
chance de transmitir a doença, ficando com a virologia negativada do
ponto de vista de detecção laboratorial. Numa situação como essa, somada
ao uso do preservativo, a transmissão praticamente não acontece. Ou
seja, o tratamento tem sido um dos fundamentos da redução da transmissão
em todo o mundo.
PB – Nos lugares em que cresce o número de novas infecções o problema é mais de prevenção ou de ampliação do tratamento?
Chequer –
Eu diria que as duas coisas. Onde cresce a Aids no Brasil hoje? No
Norte e no Nordeste. Continua aumentando não só a incidência de casos
novos, mas também a mortalidade. E o que está falhando? A prevenção, o
acesso a preservativos, as políticas públicas implementadas nas escolas –
que é outro problema que os conservadores têm criado. Havia, no
Ministério da Educação [MEC], em parceria com o Ministério da Saúde, desde os anos 1990, políticas de educação sexual, inclusive o kit [anti-homofobia, apelidado de kit gay]
que foi suspenso em maio de 2011, mesmo avalizado pela Unaids e pela
Unesco. E essa suspensão se deu por pressão da bancada evangélica na
época em que Fernando Haddad [atual prefeito de São Paulo] estava
à frente do Ministério da Educação. A fundamentação pseudorreligiosa
está prevalecendo em detrimento do princípio científico. Então, se nós
quisermos efetivamente um futuro sem Aids, além de expandir o tratamento
o mais rápido possível, temos de implementar a educação sexual nas
escolas de modo absolutamente claro, objetivo, sem preconceito. Não por
intermédio de uma palestra ou outra, mas por meio de um programa efetivo
e continuado de educação para que possamos ter a próxima geração
preparada para exercer sua sexualidade e respeitar a diversidade.
PB – Em
março de 2013, cientistas dos Estados Unidos submeteram um bebê de dois
anos a um tratamento que teria reduzido a presença do vírus HIV em seu
organismo a níveis não detectáveis – o que foi chamado de “cura
funcional”. Estamos perto de uma cura para a Aids?
Chequer –
Eu não diria que estamos perto de uma cura, mas já alcançamos uma
situação de controle clínico da doença. Houve também casos de
transplante de medula. Infelizmente, depois de um dos transplantes, o
vírus reapareceu. É uma iniciativa interessante, mas não podemos
imaginar o tratamento de Aids com transplante de medula – e medula de um
indivíduo que tenha resistência natural. Isso é inviável do ponto de
vista operacional de saúde pública. Eu diria que a prevenção ainda é um
instrumento fundamental, além da expansão do tratamento para que
possamos atingir um controle a médio prazo.
Por Carlos Juliano Barros/Problemas Brasileiros